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JOGOS À PORTA FECHADA

JOGOS À PORTA FECHADA

Zagreb. Terça-feira, dia 31 de julho de 2009.

Lembro-me que essa era uma manhã quente, muito quente, na capital da Croácia. O verão estava ao rubro e o dia parecia convidar a tudo menos a arbitrar uma partida de futebol.

No entanto, há muito que sabíamos ao que íamos.

Estávamos em “modo jogo”, com tudo preparado para aquela viagem, para aquele trabalho, para aquela missão.

A viagem da véspera não tinha sido longa mas, como todas as que implicavam fazer malas, dormir pouco e mudar de avião… cansavam.

Quando chegámos, fomos diretos ao estádio para um treino ligeiro. Isso ajudou, ajudou muito a diluir a fadiga e a combater a tal sensação de sonolência.

Ficámos bem, como novos. E, claro, estávamos confiantes. Felizes.

Tínhamos sido escolhidos para representar o nosso país além-fronteiras e isso é algo que não se explica. Sente-se.

Nessa manhã, eu, o João Santos, o Tiago Trigo e o João Capela combinámos encontrar-nos perto da receção do hotel, junto ao elevador. Estávamos em pisos diferentes e aquele era o local perfeito para seguirmos, em equipa, para o pequeno-almoço.

Nesse tipo de viagens, nada era deixado ao acaso: qualquer hora ou local que se marcasse ou indumentária que se escolhesse, era cumprida e usada religiosamente. Rigorosamente. Sem falhas.

Sabíamos que, nessas ocasiões, nunca teríamos uma segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão. As pessoas não nos conheciam e, por isso, avaliariam, em silêncio, cada ação, cada reação, cada gesto que fizéssemos.

Estávamos cientes disso.

Sabíamos que conquistar a admiração e, sobretudo, o respeito de todos, implicava agir como uma verdadeira equipa. Com profissionalismo, atitude positiva e máxima atenção… ao mínimo detalhe.

O hotel, como sempre, era ótimo. O pequeno-almoço estava agendado para as 8h do Dia-D. Dia do jogo.

O Delegado e o Observador da UEFA esperavam-nos pouco depois, à saída, para cumprirmos a primeira grande missão do dia: a de participar na reunião preparatória, que tinha, como habitualmente, lugar no estádio onde se realizaria o encontro.

Sabíamos que esta seria uma reunião diferente. Diferente de todas as outras.

O jogo seria “à porta fechada”.

O primeiro que alguma vez dirigira, na carreira, nessas condições.

Quando chegámos lá e após a habitual visita ao relvado e aos balneários das equipas, percebemos que o ambiente estava, literalmente, de “cortar à faca”.

Os representantes do Dínamo Zagreb estavam descontentes com o castigo de que tinham sido alvo, devido ao comportamento inadequado dos seus adeptos. Achavam-no pesado e injusto.

Certo é que os recursos estavam esgotados e a decisão há muito que era conhecida. Não havia nada fazer.

A UEFA sempre teve mão pesada no que diz respeito a excessos e, como em tantas outras ocasiões, foi assertiva e não teve contemplações.

O Dínamo iria mesmo jogar com os arménios do Pyunik sem o apoio do seu fervoroso público.

Em vez dos quase 40.000 adeptos – e do retorno financeiro que daí adviria -, o velhinho Maksimir Stadium teria apenas algumas centenas de almas na bancada.

MATTHEW LEWIS

Entre duras críticas à instância internacional e “bocas” sucessivas à postura passiva do adversário (supostamente feliz por se livrar da pressão dos adeptos croatas), os responsáveis do clube de Zagreb alegaram tudo: perseguição, incoerência, excesso de rigor. Flutuavam entre a crítica calma e o grito feio e censurável.

Foi duro. Muito duro.

Com mais ou menos jogo de cintura, nós – equipa de arbitragem – tentámos fugir a uma “guerra” que não era nossa. Focámo-nos essencial, no nosso trabalho e passámos as mensagens habituais, de caráter mais técnico. Depois saímos.

Saímos e deixámos que representantes do organismo europeu e dirigentes do clube croata esgrimissem os argumentos que quisessem.

Almocámos cedo e passámos o resto da tarde a estudar, a planear, a tentar perceber o que nos esperava.

A experiêcia de dirigir um jogo daquela dimensão, sem público, não era nova apenas para mim: era nova para todos nós. Sentimos que isso requeria preparação emocional. Antecipação. Prevenção.

Como habitualmente, chegámos ao local duas horas antes da hora prevista para o início da partida, ou seja, às 17.30H locais.

Com aquela temperatura, o fato oficial da UEFA parecia um cobertor. Fervia. Estávamos a transpirar e sentíamo-nos ansiosos, expectantes.

Tínhamos demasiadas dúvidas:

– Como estaria o ambiente cá fora, à nossa chegada? E à chegada das equipas?

– Quem teria acesso ao interior do estádio?

– Quantas pessoas estariam a ver o jogo?

– Como se comportariam as equipas com cenário tão desolador?

– Como seria arbitrar um jogo, desta categoria (qualificação para a Liga dos Campeões), num ambiente despido de som, cor e alegria?

– Que impacto teria isso no comportamento individual de cada jogador?

Tantas questões, tantas dúvidas, poucas certezas. Quando chegámos, as respostas começaram a surgir…

Nos arredores, amontoavam-se centenas de elementos das forças policiais e, à frente desses, vários milhares de adeptos croatas.

Bandeiras no ar, cachecóis a dançar e tarjas bem levantadas, quase todas ofensivas para a UEFA.

O aparato era enorme!

Estava ali um verdadeiro mar de gente, que não deixava um centímetro de espaço para passar o carro onde seguíamos. Lá o conseguimos, em marcha lenta, muito lenta, rumo ao interior do estádio.

Sentia-se na pele, em cada poro, toda aquela revolta e intolerância. Tanta indignação. Eles estavam doidos. Doidos de raiva.

O clube montara um ecrã gigante no exterior e seria ali – ali mesmo – que todos os adeptos assistiriam ao jogo e dariam o seu apoio. O apoio possível.

O objetivo, disseram-nos depois, era que o ruído exterior fosse suficiente para se fazer ouvir lá dentro. Suficiente para contagiar, impulsionar, motivar jogadores e técnicos.

Abstraídos de tudo aquilo, fizemos o que nos competia: entrámos no balneário, preparámos as nossas coisas, fizemos nova vistoria ao estádio.

Mais tarde, fomos para o aquecimento. Depois, equipámo-nos a rigor, ultimámos pormenores e seguimos para o túnel de acesso.

As equipas já estavam perfiladas, com os respetivos capitães à frente. Os arménios bem dispostos, os croatas sisudos. Zangados. Calados.

Arbitrar aquele jogo seria mais, muito mais do que apenas fazer cumprir as leis.

A entrada em campo foi triste. Muito triste. Foi despida do que há de melhor no futebol. Foi anti.

Anti-tudo.

Os gritos, as buzinas, as bandeiras, o movimento, as luzes, a adrenalina… nada estava lá.

A sensação foi de vazio. De vazio total.

O jogo, que era determinante para o apuramento, parecia uma outra coisa qualquer. Uma espécie de tira-teimas entre solteiros e casados.

Ouvia-se, em todo o lado, o eco de tudo: de cada pontapé, de cada remate, de cada apitadela.

Duarte Gomes, ex-árbitro português

Duarte Gomes, ex-árbitro português

DAVID DAVIES – PA IMAGES

Desolador. Profundamente desolador.

As pessoas autorizadas a assistir à partida foram incapazes de anular aquele ambiente pesado. Cinzento. Sombrio.

Cá fora, os milhares de adeptos pareciam, afinal, distantes. Demasiado distantes.

Ouvia-se, aqui e ali, um pequeno conjunto de vozes, abafadas, anasaladas. Inocentes.

Cada golo – o Dínamo acabou por vencer por 3-0 – era celebrado, ao longe, e com atraso. Com enorme atraso. Até os jogadores sentiam. Até os jogadores comentavam.

O rosto de alguns era, na verdade, o retrato fiel do que todos sentíamos.

Naquele jogo, a entrega e dedicação de árbitros e atletas foi afetada, a concentração beliscada e a tolerância minada.

Menos gente nas bancadas é sinónimo de menos qualidade em campo.

Os adeptos são, de facto, o elemento crucial da vida do futebol. O seu sinal mais. A sua força motora.

A sua presença espicaça, motiva, contagia. A sua ausência entristece, empobrece, esvazia.

Isso confere-lhes responsabilidade acrescida. Ser parte do espetáculo acarreta obrigações éticas e comportamentais.

O futebol só é festa se vivido com alegria, civismo e atitude positiva.

 

Fotos: Tribuna Expresso

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