À margem do jogo, há muita nobreza e caráter. Mas também há gente gananciosa, pequenina e deslumbrada.
O ex-árbitro Duarte Gomes escreve sobre os vários intervenientes no futebol, dentro e fora do campo: “O apelo é forte e não cabem todos. Para esses, vale tudo na luta pela sobrevivência. São perigosos e maquiavélicos. Ou então burros e ignorantes. Regra geral, a coisa dura pouco… mas enquanto dura, deforma opinião e faz danos no caráter e na reputação”
É muito fácil analisar o mundo que gira em torno do futebol.
Ele é jogado, arbitrado, treinado, aplaudido, assobiado, narrado, analisado, comentado e dirigido por pessoas. Por milhões de pessoas. Pessoas como eu e você. Pessoas como nós. Como qualquer um de nós. Jogadores, dirigentes, adeptos, jornalistas, árbitros, comentadores, treinadores… são todos de carne e osso. Gente igual à gente. Gente igual a mim e a si.
Se dividirmos toda essa multidão pelas suas zonas de ação, pelo lugar que cabe a cada um, chegamos a uma conclusão óbvia:
– Dentro de campo estão jogadores e árbitros. Só eles e apenas eles.
Ali perto mas já do lado de fora, estão treinadores, suplentes, adjuntos, delegados, fisioterapeutas, médicos, diretores desportivos e outros. Muitos outros.
Mais para trás mas ainda no anfiteatro maior, estão os adeptos. As claques. E, claro, jornalistas, radialistas, repórteres fotográficos, convidados, etc.
Bem mais longe, longe do local onde tudo acontece, está a maioria. Estão milhões de outros adeptos, sinpatizantes e curiosos, mais jornalistas, comentadores, analistas, etc.
Três grupos de pessoas em posições distintas mas vivendo a mesma realidade: a que se vive dentro do relvado, naqueles escassos metros de relva.
As que escolheram ir ao estádio são sortudas. Vêem tudo in loco. Em tempo real. Ao vivo e a cores. É um privilégio raro. Único. Merecido. Todos os que ficaram nos seus locais de trabalho, em casa ou no café, não. Vêem o que as imagens mostram. Dependem dos frames, dos ângulos, das linhas e dos replays. Dependem do delays, da qualidade do sinal e até do tamanho do écran.
No meio deste mar de almas, é importante que cada um saiba qual o seu papel, qual a sua parte no espetáculo. Os imprescindíveis – jogadores e árbitros – têm sobre si todos os holofotes.
São eles que ligam o jogo à corrente. São os autores exclusivos da obra-prima que todos os outros testemunham sem sentir. Jogadores e árbitros são os fazedores de histórias. Uns como artistas geniais e protagonistas máximos. Outros como justos zeladores das leis e das regras.
É sobre eles que recai toda a pressão, porque são eles que tomam as grandes decisões. São eles que fazem os passes, as interseções e os remates, são eles que analisam intensidades, contactos e maldades, são eles que correm quilómetros, que sentem o suor, o frio e o calor, que ouvem os aplausos e os apupos, o elogio e o assobio. Cabe-lhes a tarefa mais nobre quando a tarefa mais nobre é a mais difícil de todas as tarefas. Merecem respeito. Muito respeito.
Logo ao lado estão os treinadores. E, meus amigos, acreditem quando vos digo: os treinadores também sofrem. Sofrem muito. Não correm, não apitam nem fazem cortes milimétricos, mas têm a frequência cardíaca em alta porque a sua intensidade é outra. Não sai do físico, sai do coração e da cabeça. Sai da mente e da alma.
Sentem o jogo como se estivessem a jogá-lo. Vibram e saltam de alegria. Têm sentimentos intermitentes. São os timoneiros, os comandantes, os responsáveis de tudo. Têm a sua reputação, dignidade e trabalho em jogo, a cada jogo. A cada tática. A cada vitória ou derrota. Moram perto do céu mas com vista frontal para o inferno. Todos os dias de cada dia dos seus contratos.
Depois, bem… depois há todo um mundo de gente do lado de fora: muitos e muitos (outros) adeptos, mais jornalistas, analistas e comentadores e, claro, vários “adeptos-comentadores”, achistas e tudólogos. Na verdade, deste lado, há de tudo um pouco.
É preciso que se diga que, à margem do jogo, há muita nobreza e caráter. Há muita seriedade e dignidade. Há muito mérito e qualidade. Há gente a sério, que trabalha afincadamente e que se dedica ao limite. Há excelentes pessoas e grandes profissionais.
Mas há também uma pequena franja de gente gananciosa, pequenina e deslumbrada, que sucumbe à gula da exposição. Gente que se refugia no emblema que defende ou no cargo que pretende. Gente que usa a imagem pretensiosa e a palavra prodigiosa para esconder a sua verdadeira ambição.
O apelo é forte e não cabem todos. Para esses, vale tudo na luta pela sobrevivência. São perigosos e maquiavélicos. Ou então burros e ignorantes. Regra geral, a coisa dura pouco… mas enquanto dura, deforma opinião e faz danos no caráter e na reputação. Porque eles são assim. Não olham a meios para atingir o seu fim.
O importante, no entanto, é que, no final do dia, ganha sempre o melhor. Dentro e fora de campo. No futebol como na vida.
A vitória é sempre de quem é honesto naquilo que faz, pensa e diz. É de quem trabalha mais e melhor, de quem mais se empenha e de quem reage melhor à adversidade. De quem sabe que depois de cada pancada vem o abraço apertado. Com humildade, com os pés bem assentes no chão e com a noção clara que tuda, mas tudo na vida é efémero. Momentâneo. Um dia acaba.
Até a vida em si.