Um texto sobre satisfações, opiniões e esperança. Mas também sobre ressabiamentos e idiotas.
O ex-árbitro e comentador Duarte Gomes escreve com satisfação sobre as primeiras jornadas da Liga, em que houve elevação e, na generalidade, boas arbitragens. Mas também lança um olhar sobre aqueles que preferem vitimizar-se e pouco contribuem para o desenvolvimento do desporto
As primeiras jornadas da Liga NOS fizeram emergir algumas ideias que merecem aqui ser dissecadas. A primeira foi a elevação e cordialidade dos vários agentes desportivos. Tudo o que foi dito, mesmo na crítica, foi educado e civilizado. Este sinal, ainda que prematuro, é francamente positivo e deixa-nos com esperança. Esperança que a qualidade do discurso se mantenha assim por muito e muito tempo.
Outra nota que me apraz registar (esta com particular satisfação) é a de termos assistido a arbitragens globalmente competentes. Nas vinte e sete partidas já realizadas (são de vinte e sete e não de duas ou três que devemos falar), o trabalho dos árbitros foi de muito bom nível.
Apesar de algumas falhas, nota-se mais preocupação em acertar, maior concentração no jogo e ótima disponibilidade física. O mérito vai inteirinho para quem, lá dentro, tenta dar o seu melhor e para quem, cá fora, os ensina, os instrui, os comanda.
Outra constatação interessante (esta de índole mais técnica) foi perceber que, nestas jornadas, aconteceram lances cuja decisão final levantou interrogações.
Não estamos a falar, naturalmente, de momentos mais factuais ou objetivos, mas sim das habituais situações dúbias. Aquelas cuja análise, em campo, levanta dúvidas e cuja letra/espírito da lei só as intensificam. Uma expressão que tem que passar a constar do vocábulo de quem gosta verdadeiramente de futebol é “dúvida razoável”.
Sempre que uma qualquer situação de jogo tenha uma análise “in loco” (ou sustentação legal) cujo entendimento não permita concluir, de imediato, o que aconteceu… o mais sensato é aceitar, como boa, a decisão da equipa de arbitragem.
O princípio aqui é muito simples: se o lance é subjetivo e as regras não o objetivam, qualquer decisão final jamais seria consensual. Nestes casos, deve prevalecer a opinião de quem está lá a ver, a sentir, a cheirar, a ouvir.
Podemos concordar ou não, mas o fundamental é que respeitemos e aceitemos.
A este propósito – o dos tais lances com mil e uma análises – foi claro para todos que “a doutrina” também se dividiu. Esta divergência é perfeitamente natural e não é diferente daquela que ocorre em qualquer lado. Se pensarem bem, sempre que surge, nas nossas vidas, um assunto menos claro, as pessoas dividem-se. Faz parte. É normal. E é até salutar.
Nos cursos para árbitros, nas suas sessões nos respetivos núcleos e no âmbito do seu trabalho diário em sala, há dezenas de lances (vistos e revistos ao pormenor) que merecem acesas discussões. Uns dizem penálti, outros simulação, outros falta atacante. Todos têm idêntico know-how, todos veem o mesmo… mas é a tal questão da interpretação.
Quando fazem testes escritos, acontece exatamente o mesmo: debatem-se pela resposta certa, justificam, argumentam e até recorrem da nota. Tudo porque, lá está, há coisas que nem por escrito têm carimbos.
Estas divergências – extensiva a ex-árbitros que, como eu, se dedicam agora ao comentário desportivo – são um enorme contributo para a evolução. Para a evolução de todos nós.
O contraditório (quando justificado e explicado com elevação e fundamentação) é a melhor maneira de apelar à reflexão, de obrigar à mudança de perspectiva, de fazer-nos melhorar e crescer.
Numa grande equipa, a falta de contraditório é meio caminho andado para o fracasso. Ser autista perante a diferença de opinião é ser incapaz de perceber que não há, neste mar tão ondulado que é o futebol, verdades absolutas.
Entre nós, comentadores de arbitragem, há também quem ache que ter uma opinião diferente é logo sinónimo de ser destrutivo, estratégico ou, pior… ambicioso. Como se a ambição máxima de alguém fosse estar num sítio onde ninguém sensato gostaria de estar neste momento.
A falta de caráter, a pequenez de espírito e o facto de ver-se os outros à nossa imagem não podem servir de desculpa a quem, semana após semana, mês após mês, época após época, usa o seu nobre espaço de opinião não para informar, esclarecer ou explicar… mas para (tentar) descredibilizar quem pensa diferente. Para escoar, cá para fora, toneladas e toneladas de raiva acumulada e de ressabiamento pessoal.
Lamento. Lamentamos todos. Mas a verdade é que ainda há quem faça o que faz por acreditar genuinamente que pode contribuir. Que pode ajudar. Ainda há quem faça o que faz sem ter agenda própria, sem aspirar ao que quer que seja e, sobretudo, sem atropelar a legítima opinião e o espaço público dos outros.
É por isso que, enquanto uns choram e se vitimizam com a lenga-lenga do costume, outros dão palestras, escrevem livros, criam sites, promovem esclarecimentos didáticos nas redes sociais, dão formação a clubes, acompanham jovens árbitros, lutam pelo fim da violência no desporto, fazem consultoria além-fronteiras, apadrinham projetos de cariz social e dão a cara por cada ideia que defendem.
Não é só la fora que há idiotas. Mas, como lá fora, também por cá são esses que nos dão a oportunidade muito fácil de, sendo apenas normais, marcarmos logo a diferença.
“O silêncio é valioso… mas só é de ouro quando não cheira a consentimento”.
Autor desconhecido. Ou não.