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A consequência do erro não mora no aqui e agora

A consequência do erro não mora no aqui e agora
A consequência do erro não mora no aqui e agora. Somos o que somos, não somos o que fazemos (por Duarte Gomes, que já anda nisto há muito)

O ex-árbitro Duarte Gomes, que anda “há muito tempo no futebol”, escreve sobre arbitragem… sem escrever sobre arbitragem: “Triste seria chegar aos setentas e não ver ninguém sentado ao nosso lado, no mesmo banco de jardim que nos sentamos”

Duarte Gomes, ex-árbitro português: GETTY

Ando há muito tempo no futebol. Muito mesmo.

Tirei o curso de árbitro em 1991. Podem imaginar por aí o número de “quilómetros” que palmilhei neste mundo maravilhoso. Foi a arbitragem que me deu a oportunidade de percorrer o país de ponta a ponta, de viajar meio mundo e de estar em sítios que jamais sonhei estar. Conheci milhares de pessoas, estive em centenas de estádios, passei por cidades, aldeias e povoações de todas as cores e culturas. De todos os credos e religiões.

Sou um privilegiado. Um privilegiado que conseguiu fazer o que quis durante grande parte da sua vida. Sou grato a Deus por isso.

Nesses vinte e cinco no ativo, cresci e tornei-me homem. Comecei ainda rapaz, aos dezoito e terminei já maduro, aos quarenta e três. Como está fácil de ver, a minha vida foi fortemente influenciada pelo futebol. A aposta firme nessa carreira trouxe-me vários dissabores profissionais e pessoais mas, na esmagadora maioria das vezes, ofereceu-me momentos memoráveis, aprendizagens inesquecíveis, amizades valiosas.

A soma de todas essas vivências – felizes e menos felizes – tiveram papel relevante naquilo em que me tornei. Na pessoa que sou, no ser humano que aprendi a ser. Esta realidade não será, seguramente, só minha. Será também a sua. O caro leitor terá o seu caráter, feitio e personalidade moldados pela soma das suas experiências de vida. Pela soma das suas boas e más opções. Pela soma das suas perfeições e imperfeições.

Hoje já não sou árbitro. Sou o que escolhi ser dentro das escolhas que escolheram apresentar-me. Sou feliz porque continuo ligado ao mundo que abracei no século passado. O que faço agora, faço com empenho, entusiasmo e com o maior profissionalismo possível. Tal como eu, também o fazem o Pedro e o Zé, o João e o Paulo, o Luís, o Vítor e o Jorge, o Marco, o António e o Carlos… e tantos, tantos outros.

Num dado período das nossas vidas, fizemos parte da mesma equipa, sofremos as mesmas dores, partilhámos as mesmas alegrias. Foram incontáveis as vezes que equipámos nos mesmos balneários, que jantámos nos mesmos restaurantes e que nos encontrámos nos mesmos estágios.

Éramos a família fora da família. Éramos padrinhos e afilhados de casamentos e batizados. Éramos os irmãos que se viam mais do que os irmãos se vêem. O pós-carreira levou-nos para rumos diferentes. Naturalmente. Um está aqui, outro ali, tantos outros acolá. Andamos perto mas quase sempre longe, a darmos o nosso melhor nas áreas que decidimos abraçar.

É, de novo, a vida a ser vida. É assim connosco, como será assim consigo e com a malta da sua rua, da sua infância, da sua juventude. O mais importante no meio desta inevitável lógica é nunca nos esquecermos de uma premissa fundamental:

– Nós somos o que somos, não somos o que fazemos.

O que fazemos é pontual e momentâneo. É efémero. Mais cedo ou mais tarde, acaba. Quem somos é estrutural. É intrínseco. É para a vida.

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Quando passarem outros trinta anos (como os trinta que entretanto quase passaram), teremos outra idade mas continuaremos a ser da mesma geração, porque não duvidem… vamos envelhecer todos juntos, ao mesmo tempo. E quando esse dia chegar, será importante termos alguém por perto. Será importante sentir que soubemos manter, a menos de um metro, quem era realmente valioso, independentemente dos caminhos que a vida antes nos mandou seguir.

Triste seria chegar aos setentas e não ver ninguém sentado ao nosso lado, no mesmo banco de jardim que nos sentamos. Algo teria que ter corrido francamente mal nas escolhas de hoje para que o castigo da velhice fosse a ausência de amigos.

É importante pensarmos nisto agora, porque nós, todos nós – os do mundo da bola, da política ou de qualquer outra área – devemos priorizar sempre o essencial ao acessório. Devemos olhar para o futuro sem nos deixarmos cegar pelo presente.

O que fazemos nunca pode ser mais importante do que somos. A consequência desse erro não mora no aqui e agora. Mora no tal banco de jardim, que será pequeno para tanta gente… ou demasiado grande para um só.

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