O assunto do momento é o Campeonato do Mundo, na Rússia. Compreensivelmente. Mas, por entre os intervalos da chuva, por cá, a atualidade continua a seduzir-nos com notícias que interessam a quem, como eu, gosta de desporto.
João Sousa subiu dois lugares no ranking ATP; a maioria das clubes já iniciaram os seus trabalhos, com renovadas energias e ambição; Frederico Morais continua a surfar, em beleza, nas ondas da África do Sul…
Mas o assunto que hoje vos trago diz respeito, ainda que indiretamente, a uma modalidade que muito prezo: o futsal.
Os quatro jogos que decidiram o campeão da época passada foram disputados até ao último segundo, do último encontro. Um verdadeiro hino à modalidade. Sporting, justíssimo campeão e Benfica, digníssimo vencido, brindaram todos os seus (e demais) adeptos com espetáculos vibrantes, intensos e emocionantes.
Palmas, muitas palmas para uma modalidade em franca expansão, recheada de executantes muito, muito talentosos. Mas… e há sempre um mas… o problema ocorreu fora dos ringues.
Sérgio Magalhães, árbitro da AF Porto e um dos elementos da equipa de arbitragem do Jogo – 3, foi agredido, com violência inusitada, por um indivíduo encapuzado.
Os contornos desse ato hediondo dão que pensar.
A agressão, inédita em Portugal neste contexto, não aconteceu no interior do pavilhão. Não aconteceu antes ou após o apito final. Não aconteceu sequer nas imediações do local onde se disputou o encontro.
O juiz portuense foi agredido apenas na manhã do dia seguinte (muitas horas mais tarde, portanto), a cerca de 300 kms do local e junto ao seu local de trabalho.
O animal que bateu – porque só um animal é capaz de cometer uma atrocidade daquelas – sabia bem onde ir, o que fazer, quando e como. Conhecia o local de trabalho do Sérgio e os seus hábitos, as suas rotinas diárias. Sabia as horas a que ele chegava e onde estacionava.
O que aconteceu naquela manhã de 2ª feira é algo de (quase) inacreditável, num país que se diz de brandos costumes. De gente pacífica.
Pouco passava das 8h. O Sérgio, ainda dentro do carro, foi surpreendido pelo agressor, que já o esperava. De cabeça e rosto cobertos por uma rede que lhe escondia as feições, não disse nada. Apenas disparou dois socos, de punho bem cerrado.
Ainda sentado, Sérgio Magalhães não teve reação. Nem podia. Já sangrava abudantemente do nariz antes sequer de perceber o que se tinha passado. Foi tudo rápido, brusco, violento. Muito violento.
Depois dos murros, veio o pau. O “mascarilha” tinha-o colocado entre as pernas para sacar quando desse jeito e continuar a bater. Assim pensou, assim fez. Seguiram-se várias pauladas, mas desta vez o braço esquerdo do agredido, ainda que instintivamente, protegeu o rosto, aguentando a violência dos impactos.
Enquanto batia, a espumar de ódio e a destilar raiva, o animal, o covarde, o pequeno delinquente encapuzado, repetia, em alto e bom tom: “Não nos voltas a roubar… não nos voltas a roubar!”
O aparato da cena fez disparar alarme social. Algumas pessoas foram aparecendo e, timidamente, aproximando-se. O monstro fez aquilo que fazem todos os monstros quando confrontados em igualdade de meios: fugiu. Fugiu a sete pés.
Por essa altura, o Sérgio – ainda sentado dentro do carro – continuava a procurar perceber o que acabara de acontecer. Combalido, magoado, ferido, pediu assistência médica. No hospital para onde foi levado, foram diagnosticadas várias lesões no nariz, que o deixarão de baixa médica por tempo indeterminado.
Está em casa, magoado fisicamente e destroçado emocionalmente.
No dia anterior, o Sérgio cometera o crime de ser um dos árbitros de um jogo de futsal.
O day after de uma coisa destas é sempre desgastante. Os amigos ligam, os colegas revoltam-se, a família desespera… mas mal mesmo fica quem esteve no olho do furacão. O nariz e o braço vão eventualmente deixar de doer, mas o coração, esse, continuará apertado, angustiado, fechado. Por muito tempo.
Enquanto o seguro decide se suporta ou não as despesas médicas (ao que parece, esta coisa de levar pancada no meio da rua não prova que tenha que isso tenha relação com a atividade desportiva do agredido), a polícia está a procurar fazer o seu trabalho.
Mas pior, bem pior do que essas minudências burocráticas, tão más e tão ridículas, que nem merecem comentários, é o espanto que nos leva à one million dollar question: mas como é que isto acontece por cá?? Como é que é possível?!?
Nos últimos três anos, as agressões a árbitros de futebol/futsal cifram-se em números que se escrevem… com três dígitos. Ao todo, foram quase duas centenas.
As razões para que isto continue a acontecer estão mais do que sinalizadas, são evidentes e conhecidas por todos nós. Essa perceção agrava, só por si, o facto de continuarem a acontecer. Aqui ou ali, semana após semana, jogo após jogo.
O direito à crítica, à indignação e à discordância – legítimo, se exercido de modo próprio e em sede própria – é frequentemente usado como arma de arremesso, sob o lema de “julgamento popular”.
Os processos de vitimização por quem tem memória seletiva e, regra geral, glorioso passado disciplinar, faz destas coisas. A importância crescente das redes sociais na amplificação de mensagens de ódio permite que se exponencie, ao máximo, ondas de contestação que ultrapassam, em tudo, o que seria expetável. O que seria justo, normal e aceitável.
São essas tiradas que alimentam as mentes dos mais influenciáveis e incitam-nos a atos de violência que nos transportam para o lado mais negro e obscuro do ser humano.
No entanto, parece claro que, neste caso específico, o planeamento e preparação da trama foi tudo menos aleatório. A confirmação desta suspeita ficará, naturalmente, a cargo das autoridades.
Este tipo de barbaridades, igual a tantas outras que já aqui referenciámos vezes sem conta, tem que ser o mote para que se proponham, de uma vez por todas, alterações na legislação penal e na regulamentação desportiva disciplinar.
As entidades responsáveis por ambas têm mostrado grande sensibilidade para abraçar mudanças e endurecer sanções, mas é urgente que a vontade e disponibilidade manifestadas passem para a rápida concretização de medidas firmes e concretas.
O tempo urge e há algures por aí um outro Sérgio Magalhães em vias de ser agredido. Sem saber onde, nem quando nem como.
Fotos: Tribuna Expresso