O hábito tem décadas e é transversal. Acontece cá e em todo o lado.
Na preparação da nova época, as equipas procuram testar as suas soluções, realizando jogos-treino com adversários escolhidos para o efeito.
São ensaios importantes para a consolidação e sistematização das suas ideias e objetivos desportivos.
Nós conhecemo-los como “jogos amigáveis ou particulares”.
Também para os árbitros essa é, habitualmente, uma oportunidade de ouro para se treinarem e limarem arestas, simulando situações de jogo e ajustando aspectos vários, como o foco, a comunicação ou condição física.
Tudo certo.
O problema é que, não raras vezes, algumas dessas partidas são férteis em ocorrências disciplinares graves, que a sua natureza oficiosa, muito mais leve e ligeira, tantas vezes potencia.
Como todos se recordarão, há não muitos anos, um jogador de futebol profissional não controlou as suas emoções e num gesto absolutamente irrefletido, agrediu um árbitro assistente, após discordar com uma decisão daquele. Foi sancionado durante meses, prejudicando a sua carreira e a sua equipa.
Já esta época, ocorreram outros incidentes feios, evitáveis e desnecessários. Cá dentro e lá fora.
Na verdade, o que não faltam são histórias de conflitos entre jogadores e equipas técnicas, invasões de campo e respostas infelizes e ineficazes das equipas de arbitragem.
Para que o caro leitor perceba, os jogos particulares estão regulamentados.
Em teoria, sempre que uma equipa oficialize o encontro que quer disputar – como deve fazer, dando disso conhecimento à sua Associação de Futebol ou FPF – estas tomam, de imediato, as respetivas diligências.
Por exemplo, nomeiam uma equipa de arbitragem (oficial) e esta fica obrigada a efetuar relatório de jogo, depois enviado à entidade competente.
Regra geral, e em função da sua categoria, esses jogos obrigam à presença de policiamento, também solicitado pela via habitual.
Quer isto dizer que um jogo particular oficialmente preparado… tem custos.
Custos por vezes elevados face ao objetivo desportivo que se pretende e que, por regra, são suportados pela equipa organizadora/anfitriã.
Mas o maior encargo nem é o financeiro: é o da exposição ao risco disciplinar.
Qualquer atleta, técnico ou dirigente que seja advertido ou expulso será, em função da gravidade da sua infração, punido em conformidade. Tal como aconteceu com o tal jogador e com a sua equipa.
Para escapar a esse formalismo e evitar importantes constrangimentos competitivos, muitos clubes optam por organizar jogos particulares, sem disso dar conhecimento a quem de direito.
Marcam dia, local e hora, convidam o adversário e um árbitro local e realizam o jogo. Os processos são mais simples, fáceis de agilizar e até compreensíveis (evitam gastos desnecessários e mil e uma burocracias), sendo que, regra geral, quase sempre correm bem. O problema é que às vezes… não.
E quando assim é, assiste-se a uma espécie de “bar aberto”.
Bar aberto para a briga, o insulto, a ameaça e a agressão, quer entre jogadores e adversários, quer para com a equipa de arbitragem convidada.
Nessas partidas ditas oficiosas, um dos hábitos que os juízes têm – até pela natureza marginal do encontro – é o de não exibirem cartões. Como se isso simulasse, fielmente, a competição para o qual todos se estão a preparar.
Quando há azar, interrompem o jogo, convidam o treinador a substituir o atleta que se portou mal e este tira-o de campo… ou não.
Só nesse momento, nesse preciso momento é que o árbitro aprende a lição.
Esta coisa de ser bom samaritano tem regras e momentos próprios. Muitas vezes, somos traídos pelo excesso de cordialidade.
Sei disso porque já cometi o mesmo erro. Já me pus a jeito e não correu bem.
Ao aceitarem expor-se ao risco de não ter policiamento e de não ter que registar as ocorrências da partida que dirigem, os árbitros perdem todos os seus direitos. O direito ao seguro, à proteção devida e até à sua remuneração.
Mais.
Infringem normas (que os obrigam a informar a sua associação do convite que lhes foi endereçado) e desvalorizam o seu nome e estatuto, expondo-se gratuitamente a agentes desportivos que, muitas vezes, os respeitarão menos. Para sua proteção, deviam no mínimo assegurar-se que existiam garantias e condições que zelassem pela sua integridade. Pela sua segurança.
Também os clubes deviam manter a opção que, inteligentemente, tantas vezes utilizam: se é para oficializar, que se faça “by the book”.
Se não é, que seja o treinador ou o adjunto a apitar a peladinha.
Ter o melhor dos dois mundos é que não.
Visto à distância e dando de barato que, regra geral, estes excessos ocorrem devido à boa-vontade de todos, percebe-se que está na altura de se olhar para esta coisa dos “particulares” de um maneira diferente.
Clubes, setor da arbitragem e entidades competentes devem procurar estabelecer regras e compromissos sérios e firmes, que regulem a natureza de todos os amistosos. Todos sem exceção.
Enquanto isso não acontecer, continuamos a correr o risco de ver, aqui e ali, partidas terminadas a meio, jogadores de cabeça perdida, treinadores aos insultos entre si e árbitros empurrados ou até agredidos.
Pergunto: isso serve a alguém?
Foto: Tribuna Expresso