Por regra o futebol e, no meu caso, a arbitragem, são o tema central destas crónicas. Essa verdade faria mais sentido hoje, dia de pós-derby (a esse propósito, fica a nota: escrevi este texto “ontem”, à hora de almoço, longe de saber o desfecho do jogo de Alvalade).
Mas a verdade é que eu, tal como o caro leitor, vivemos inseridos num contexto ao qual não estamos imunes. Somos parte integrante de uma sociedade e cabe-nos o dever de participar ativamente nela. É precisamente esse posicionamento que me leva ao “offtopic” de hoje.
Nos últimos dias tivemos todos a oportunidade de ler, ver e ouvir um conjunto de notícias que davam conta de alegadas irregularidades no processo de vacinação para a Covid-19. E o que todos lemos, vimos e ouvimos é suficiente para fazer corar de vergonha um país que tem muitas coisas boas e muita gente séria. Gente que não merecia que meia dúzia de burlões atropelasse tudo e todos, só para se colocar à frente de quem mais precisa.
Os casos conhecidos são graves, criminosos (sim, são vários os crimes em que incorrem) e revelam, acima de tudo, egoísmo, falta de profissionalismo e uma irresponsabilidade social aterradora.
Para esses sobreviventes, é cada um por si. Um esgoto a céu aberto de condutas desviantes e de podridão moral.
Numa altura em que o país está a sofrer na pele as consequências devastadoras do confinamento… numa altura em que há negócios a fechar, pessoas a desesperar e vidas a partir… numa altura em que apenas unidos conseguimos superar este pesadelo, é triste perceber que há quem abuse do cargo que ocupa para, de forma leviana ou pelo menos negligente, colocar os seus interesses à frente das suas obrigações profissionais e morais. É triste ver que há quem coloque a sua vida à frente da vida dos outros.
Esta decadência moral não pode ser apenas punida com demissões nem pode aceitar justificações como aquela em que se jura, em comunicado, que todas as alminhas de segundo plano que foram vacinadas eram afinal prioritárias. É a falta de vergonha no seu expoente máximo.
Isto podia ser só mais uma saloice qualquer se não fosse grave, mas é. É grave, é burla, é fraude. Tem que ser responsabilizado e tem que ser varrido de vez. Nós acreditamos na justiça e, numa altura de urgência, ela não pode vacilar.
A chico-espertice e o nacional porreirismo sempre foram a nossa praia. Há séculos que somos assim: um povo decente, boa gente mas convenhamos, perito em pequenos expedientes. Deixemo-nos de falsos moralismos: quem nunca aproveitou o lugar à frente, quando alguém se distraíu na fila? Quem nunca pediu um favor a um amigo? Quem nunca esperou ter um benefício que, se calhar, não merecia? É como é e é assim. Está-nos no sangue e quando não fere diretamente os outros, quando não causa danos ou prejuízos, quando não contraria a lei… é censurável mas caramba, não é criminoso.
Isto não. Isto é outro nível de malícia e despudor. Não esqueçamos que por cada pessoa que levou esta dose de forma indevida, há uma de alta prioridade que foi desconsiderada. Há uma uma vida que pode falhar.
Tenho muito orgulho em ser português e muito orgulho no meu país. É por isso que tenho nojo de gente assim tão pequenina, tão miserável, tão patética.
Demissão já! Responsabilidade criminal já! De olhos postos e a confiar no bom trabalho do Ministério Público.
PS – Nunca será uma questão de ideologia. Nunca será uma questão politico. Será sempre uma questão de caráter e integridade pessoal ou, no caso, da falta de ambos.