Em muitas das crónicas que aqui escrevi, procurei transportar-vos para dentro do terreno de jogo. A ideia foi sempre a de vos mostrar as diferenças entre decidir em campo e julgar fora dele.
O objetivo era que percebessem que aquilo que analisamos e criticamos cá fora, raramente coincide com o que se vê e sente, lá dentro.
Não se trata de uma forma de branquear erros ou justificar más arbitragens. É uma evidência, um facto comprovado.
Ao nível do relvado, tudo é rápido, instantâneo, imediato. As jogadas multiplicam-se a uma velocidade inacreditável. Há sempre um corpo pelo meio, uma gota de suor na cara ou uma voz, ruído ou distração que perturba. As emoções, a adrenalina e a fadiga misturam-se com a lucidez, o discernimento e a concentração. Há muitos homens a correr, muitas personalidades para gerir, muita intensidade para acompanhar.
Mas se isso é um facto incontornável, não deixa também se ser verdade que a partir desta época, essa distância está encurtada. Os árbitros que dirigem jogos do escalão maior passaram a dispor de uma ferramenta de exceção, que procura reduzir diferenças e corrigir injustiças.
A introdução da vídeo-tecnologia, ainda que em fase de testes, ofereceu às equipas de arbitragem o auxílio que estas há muito mereciam e que os clubes há muito exigiam.
No entanto, o aparecimento do “VAR” levanta um risco, cuja reflexão gostaria hoje de sublinhar: o de passarmos a analisar o jogo de forma puramente teórica. Formatada. Quase mecânica.
O futebol é um desporto de contacto, que aceita e sempre aceitou, até ao seu limite máximo, a fisicalidade entre atletas. Essa verdade pode estar em vias de perder a sua identidade se todos nós continuarmos esta apologia, de verdadeira caça às bruxas, à procura que cada lance televisivo prove que existiu carga, empurrão ou rasteira.
Para quem está no campo, a disputa mais viril de uma jogada, a marcação cerrada ao adversário ou a luta de braços entre jogadores é algo natural. Permitido. O problema é que, ao passarem a ser vídeo-escalpelizadas, deixam de ser. O aceitável passa a suspeito. Franzimos o nariz a tudo o que acontece: “Será que…? Terá sido suficiente…? Houve motivo para…?”
Arbitrar através das imagens, como nós (todos nós) temos feito, retira humanidade ao jogo. Destrói a sua essência. Torna-o uma espécie de rato de laboratório, onde qualquer análise é detalhada, questionada, escrutinada. É aí que o jogo perde a sua mais pura dimensão.
Este é o nosso grande desafio. O desafio que todos nós precisamos pensar e repensar.
Esta é a nossa escolha: preferimos o jogo dissecado ao frame ou escolhemos aceitar a dúvida, a dinâmica pura, aquilo que o futebol tem de melhor? Mesmo quando corre mal para “nós”?
Afinal, qual é a linha de razoabilidade que separa um do outro? Onde termina a avaliação prática, do “aceita-se” e começa a constatação evidente, do “assim não”?
Esta é uma de muitas aprendizagens que esta tecnologia vem impor ao futebol. Uma de muitas, que vão bem além de protocolos, de intervenções e de outras questões técnicas.
Mudança de chip. O primeiro grande passo que todos temos que dar, porque – não duvidem -com a vídeo-tecnologia muda o jogo e muda a forma como estamos e vemos o jogo.
Se não percebermos isso rapidamente, perdemo-nos pelo caminho. Ou perde o futebol