Não é à toa que a chamam de rainha.
A mais festiva competição de futebol, em Portugal, está quase a completar oitenta anos de idade. Oitenta!
A estreia – então, como agora sob a égide da Federação Portuguesa de Futebol – aconteceu na já longínqua época de 1938/39.
O primeiro vencedor? A Académica de Coimbra, a briosa que todos conhecemos e aprendemos a gostar e respeitar. Fez história ao derrotar, numa final disputada, o Benfica (4-3).
De então para cá, a lista de ilustres vencedores e dignos vencidos não parou de crescer. Anualmente. Honrosamente.
Os primeiros finalistas conheceram-se em partidas que se jogaram nos extintos Estádio do Lumiar e Campo das Salésias. A partir de 1944 (e com honrosas exceções pelo meio), passaram para o mítico Estádio Nacional (no Jamor), onde desde então e até aos dias de hoje realiza-se o jogo decisivo. O jogo dos jogos.
O tal que permite que se suba a escadaria do estádio colada aos adeptos, rumo às tribunas, para receber das mãos do Presidente da República o mais emblemático de todos os troféus.
São centenas de clubes e regiões, de todo o país.
A prova-rainha inclui, todas as épocas, cerca de quinze ou dezasseis dezenas de emblemas, de vários escalões nacionais e distritais.
Esta época (2018/19), foram 155 os clubes que, de norte a sul do país – ilhas incluídas – qualificaram-se para a prova onde todos podem aspirar a vencer, sem filtros, sem medos, sem censuras.
Na mesma medida dos muitos jogos, estão as equipas de arbitragem nomeadas para dirigir partidas desta competição. As regras dizem que os árbitros devem ser, no mínimo, do mesmo escalão da equipa mais categorizada.
Um juiz distrital não pode dirigir jogos de equipas nacionais, tal como um árbitro de segunda categoria não pode arbitrar um encontro em que intervenha uma equipa da 1.ª Liga. Faz sentido.
Ao longo da carreira, tive o enorme prazer de dirigir inúmeros jogos desta competição.
Os jogos da Taça são diferentes e especiais, sobretudo aqueles que se disputam “em casa” das equipas ditas mais pequenas ou menos favoritas.
Aí sim, sente-se na pele o futebol naquilo que de mais puro tem.
A força dos adeptos, o orgulho da cidade, a mobilização de miúdos e graúdos… é tudo mágico. Memorável. Imponente.
A verdadeira festa faz-se cá fora. Na véspera e na manhã do dia de jogo, porque o que depois acontece lá dentro é apenas o culminar. O fogo de artifício no final do casamento.
As ruas vestem-se a rigor, as bancadas preenchem espaços antes despidos, há mais som, luz e cor. Há movimento anormal, permanente. Há ansiedade latente.
Toda a gente sorri com um sorriso que desarma qualquer um. Com um sorriso que explode do nada.
As conversa de café, agora animados por gente e mais gente, são sobre o mesmo. Sobre o jogaço que está à porta. Sobre quem vai e quem vem.
“Somos capazes de fazer uma surpresa”, “não esperem facilidades”, “connosco ninguém se mete” ….
É o orgulho regional, bairrista, redimensionado ao expoente máximo. É o brilho no rosto, a lágrima no canto do olho. A terra puxa, o coração palpita, a emoção aumenta.
Que coisa bonita.
Em redor do estádio – ou de muitos campos da bola que existem por aí – apinham-se vendedores de cachecóis e bandeiras. O fumo e o cheiro que andam pelo ar não enganam: há por ali muita bifana e courato, muita vinhaça e cerveja.
O Presidente da Junta explode de emoção, o pároco rejubila, avós e avôs não perdem pitada.
Toda a gente quer fazer história no dia que se faz história.
A festa da Taça é um dos momentos mais mágicos que o futebol ainda tem para dar.
Remete-nos para os tempos em que tudo era simples, genuíno, inocente. Não há nada melhor que ver um sorriso simpático de quem nos recebe com simplicidade, com amizade, com a humildade que só as grandes pessoas sabem carregar no coração.
Não há estádio, tecnologia ou profissionalismo que bata esse sentimento, essa sensação genuína.
O futebol português pode (e deve) continuar a evoluir, a industrializar-se, a modernizar-se. Pode e deve crescer para além das quatro linhas… mas não pode nem deve perder o seu lado mais romântico. A sua beleza natural. O seu encanto.
É a Taça de Portugal no seu expoente máximo. A nossa certeza. A nossa esperança. O verdadeiro orgulho nacional.
Não é à toa que a chamam de rainha…
Foto: Gualter Fatia, Tribuna do Expresso