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Uma justiça desportiva em que ninguém acredita

Uma justiça desportiva em que ninguém acredita
Portugal não pode ter uma justiça desportiva em que ninguém acredita, alvo de gozo e chacota.

O ex-árbitro Duarte Gomes está preocupado com o estado da justiça desportiva em Portugal e aponta como exemplo o que foi feito em Inglaterra.

 

 

Este é um artigo de opinião de alguém que pertence a uma área diferente. Mas essa diferença não a inibe de ter determinado posicionamento quando em causa estão situações que se cruzam.

Importa, no entanto, ressalvar que este é um assunto vasto, complexo e delicado. Uma análise mais profunda – maior do que a mera perceção pública, que aqui procurarei transmitir – exige um conhecimento específico das leis e dos regulamentos em vigor.

Dito isto, lanço desde já um desafio: perguntem a 100 pessoas o que pensam sobre o atual funcionamento da justiça desportiva em Portugal.

Pelo que leio, vejo e ouço (e não me refiro aos Nobel da literatura que as redes sociais produzem diariamente, mas a vozes a quem reconheço conhecimento e competência), diria que, pelo menos, 90% estará desgostosa e descrente. Muito. Muito mesmo.

Esta é uma conclusão que não deve ser alvo de sátira ou de gozo. Que não deve dar alegria a ninguém. É triste e vale a pena refletir sobre ela.

As razões serão as da evidência exterior, aquelas que a perceção pública concordará, contribuem para a nota francamente negativa: elevada burocratização de processos e (enorme) morosidade na sua resolução.

Na prática, muita volta pelo meio e demasiado tempo de espera.

O exemplo mais recente é relativo a uma decisão de arquivamento (pronunciada ontem, 8 de outubro de 2019) sobre factos ocorridos no passado mês de maio. Factos que, aparentemente, até foram registados em vídeo o que, teoricamente – aos olhos de um leigo como eu ou o caro leitor – até facilitaria a produção/recolha de prova.

Quase cinco meses para que fosse tomada uma decisão relativa a um incidente que ocorreu na última jornada da época passada.

Há aqui uma (outra) ressalva que não deve ser omitida e que é da mais elementar justiça ser clarificada:

– A “culpa” de todo este peso e/ou morosidade não é de quem decide. Não é dos conselheiros do Conselho de Disciplina da FPF nem é da Comissão de Instrutores da Liga (nos casos em que esta é chamada a intervir).

Um e outro órgão (e respetivos agentes) estão, literalmente, de mãos atadas.

Cumprem com os regulamentos que estão em vigor e que foram aprovados em sede própria. Cumprem com o que dispõe a lei. Nada podem fazer quanto aos passos obrigatórios que têm que ser dados, em determinados processos, a dado momento.

Muitas vezes, comparo estes profissionais – pessoas que tenho como sérias e com profundo know-técnico – ao videoárbitro que, em sala, vê claramente uma falta passível de segundo amarelo e nada pode fazer… porque o protocolo não permite.

O problema real não está nas pessoas, é estrutural. Está nas disposições emanadas pela legislação e regulamentação desportiva.

Não é normal – e ninguém pode achar que seja – que uma decisão como a que ontem foi divulgada, demore quase cinco meses a ser tomada. Desculpem, mas não é normal.

Portugal tem tudo para ser diferente dos outros. Diferente para melhor.

Tem os tais talentos puros que nos fartamos de elogiar e que nos enchem a auto-estima de alegria e o coração de orgulho; tem estádios fantásticos, condições geográficas de excelência e um boletim meteorológico de fazer inveja; tem um povo hospitaleiro, de brandos costumes, altamente tolerante e que ama futebol; tem uma das melhores gastronomias do planeta; tem paz, cultura, equilíbrio. Em suma, tem tudo para ser melhor do que todos. Em tudo. Ou quase tudo.

Mas não pode ter uma justiça desportiva em que ninguém acredita.

Uma justiça que é alvo de gozo e chacota, não apenas por parte dos toldados do costume, que veem as decisões com palas ou ao sabor do que lhes dá mais jeito mas, sobretudo, de quem procura olhar para as coisas e perceber que está errado. Muito errado.

É lugar comum falarmos do futebol inglês quando queremos dar exemplos de excelência. Às vezes, chega a ser injusto porque até lá há buraco sem cimento… mas não é à toa que se trata do melhor futebol do planeta. E não é à toa que é a referência mundial de qualidade. O expoente máximo do jogo.

Em menos de trinta anos, os ingleses tiveram a capacidade (ou melhor, a visão estratégica e a inteligência) de transformarem o seu futebol abrutalhado em algo absolutamente valioso.

O jogo evoluíu do puro pontapé para o ar, cheio de arruaceiros, hooligans e maus exemplos, para um espetáculo recheado de artistas talentosos, de valor acrescentado e de patrocinadores sequiosos por investir.

Essa mudança foi planeada, ponderada, pensada. Foi fruto de um plano de ação bem definido. Custou dinheiro e levou tempo. Eles chamam a isso investimento a longo prazo. E chamam bem.

Passaram a cuidar da segurança interna, (impedindo o acesso do adepto criminoso), criaram uma empresa que gere, autonomamente, a arbitragem profissional, investiram na profissionalização de todos os seus agentes, montaram uma liga de excelência, apostaram na melhoria dos seus estádios e das condições das suas equipas, fizeram contratos inteligentes (sobretudo com patrocinadores e com as televisões), tornaram o seu produto apelativo para venda além-fronteiras e, claro, garantiram que, em termos de disciplina, tudo passaria a ser exemplar. Célere e eficaz. Nem sempre justo, quiçá… mas de credibilidade inatacável. Garantidamente.

É assim que eu e todos nós a vemos hoje: implacável. Rigorosa. Mas, caramba… exemplar!

Há que rever muitas coisas nesta matéria em Portugal. Não podemos continuar reféns de uma justiça que todos achamos ser lenta, excessivamente burocratizada e com tiques de “fato à medida”.

Isso é profundamente inglório/injusto para quem a aplica e péssimo para o rosto e imagem de um futebol que não deve continuar a mascarar nos seus sucessos… muitas das suas debilidades.

 

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