Fico com um aperto no peito de cada vez que me pedem para fazer um balanço sobre o estado atual do futebol português. É estranho mas é verdade.
Fico com uma espécie de nó na garganta que deixa uma sensação feia, de desconforto e angústia. Penso que é por estar ligado a este jogo há quase vinte e oito anos e por gostar tanto dele.
Lembro-me que, em miúdo, arrancava folhas do caderno, enrolava-as com fita cola e do nada, criava um cautchú de fazer inveja a qualquer menino da minha idade. Depois, bem… depois tudo servia para saciar a taradice: fazia pontaria para a porta da casa de banho, para o espaço entre dois vasos ou para os pés da cama. As balizas de improviso ampliavam o imaginário e transportavam-me para estádios de verdade, repletos de adeptos rendidos ao meu talento de “pequeno prodígio”. Quando ia para a cama, levava esse lirismo para os meus sonhos. Via-me a ser um génio da bola, um craque de nomeada. Adormecia assim. Com um sorriso deslumbrado que os inocentes alimentam quando estão distantes do mundo real.
Aos domingos, punha o rádio colado ao ouvido e devorava os relatos como uma criança devora gelados num dia de verão. E à noite, não me deitava sem ver o “Domingo Desportivo”, mesmo que a cassete com os dois minutos do jogo de Chaves chegasse a horas proibitivas…
Eram tempos diferentes sim, mas aquela doce ignorância fazia-me sentir genuinamente feliz.
Sou do tempo do Bento, do Damas e do Zé Beto. Do Futre a rebentar, do Manuel Fernandes a faturar e do Rui Águas a rivalizar. Sou do tempo em que o futebol não se via na televisão, nao se jogava nos bastidores nem se dissecava nas redes sociais.
Sei que os tempos mudaram e as coisas evoluíram. Naturalmente. Felizmente.
Mas tambem faço parte dessa mudança, desse crescimento e sei que a principal evolução deve estar nos comportamentos, nas palavras e nas atitudes. Se o homem não muda para melhor, tudo o que cresce em torno de si deixa de ser uma ferramenta importante e passa a ser uma arma mortífera.
E no que diz respeito ao futebol, é aí que moramos neste momento. Naquela zona limite, em que os nossos recursos são desaproveitados e usados de forma errada. Perigosamente errada.
Não sei se sou só eu, mas nunca vos apetece perguntar se não estará tudo doido?
É inacreditável o que se tem visto, nos últimos anos. Inacreditável. Acho que ainda não parámos a sério para refletir bem sobre a gravidade do que está a acontecer. Não parámos para olhar para o buraco que estamos a cavar bem por baixo dos nossos próprios pés.
Não vejam neste desabafo ataques dirigidos a alvos específicos ou crítica encapotada a alguém em particular. Acreditem, não é. Não foi e nunca será.
Não estou contra ninguém, estou a favor do futebol. Do nosso futebol.
E estou desiludido por constatar, dia após dia, que o clima é de guerrilha crescente, de ataques permanentes, de culto do ódio.
Será que alguém com dois dedos de testa e razoável inteligência emocional se revê no futebol das bocas, insultos e bacoradas?
Será que alguém equilibrado e mentalmente estável gosta de assistir a tanto bombardeamento diário, quando há tanta coisa boa para falar e discutir? Para alcançar e conquistar?
Já não estão fartos? Já não estão cansados de tanta lama, de tanta degradação e lodaçal? Já não chega?
Os últimos anos, que eram os do Euro e das vitórias memoráveis, dos Figos e dos Rui Costas, dos Baías e dos Ronaldos, dos Mourinhos e dos Quaresmas, são afinal os anos dos apitos e das frutas, dos vouchers e dos mails, das PJ’s e dos DIAPS, dos Twitters e dos comunicados, das queixinhas e dos recursos.
Os últimos anos são o das suspeições e das insinuações, das claques e das mortes, das detenções e dos julgamentos mediáticos. O das corrupções e das perseguições. Da malandrice, da ofensa e da ameaça.
Parece que estamos em pleno outono e que o céu está sempre tapado por uma nuvem negra que teima em não sair dali.
Por baixo dela, andamos todos nós. Hipócritas mascarados de íntegros.
O adepto que reclama é o mesmo que consome avidamente os formatos televisivos que tanto critica. O adepto que critica é o mesmo que comenta e partilha mensagens de ódio mas que ignora as outras, positivas, construtivas. Pedagógicas.
O adepto que se escandaliza é o mesmo que tantas vezes insulta, que manda pedras e faz esperas à porta dos estádios ou dos centros de treino.
O dirigente que critica é tantas vezes o mesmo que dá o pior exemplo. É o arruaceiro disfarçado de cordeiro. O dirigente que pede justiça é tantas vezes o mesmo que a contorna, que a ilude, que a atropela.
O dirigente que manda a primeira pedra é tantas vezes o mesmo que mora debaixo do telhado mais frágil.
As estruturas que apelam sistematicamente ao fairplay são tantas vezes as mesmas que tinham obrigação de atuar e que nada fazem. As mesmas que foram mandatadas para intervir e nao intervêem.
O jornalista que se escandaliza é tantas vezes o mesmo que dá voz ao escândalo. O mesmo que critica a falta de ética é tantas vezes o mesmo que se esquece dela naquilo que divulga.
Neste mar de peixe podre, todos são responsáveis. O futebol português está ferido de morte e a culpa é nossa. Só nossa.
Estamos embrulhados numa teia de maldade gigantesca, numa teia de estupidez e ganancia, numa teia de querer ganhar a todo o custo.
Está na hora de … parar.
De parar de vez.
Fazemos parte do problema. Está na hora de fazermos parte da solução.
O jogo que todos gostamos tem que regressar para as mãos e pés dos seus verdadeiros atores. Tem que regressar aos relvados, aos jogadores e treinadores.
O futebol tem que voltar a ser o jogo que imaginávamos em crianças e que alimentava o nosso imaginário de infância… senão mais vale mudarmos de atividade.
Foto: Tibuna do Expresso