E se de repente eu fosse o adepto e tu o árbitro?
E se de repente trocássemos de lugares? Tu serias eu e eu seria tu. Tu pegavas no apito e cartões, usavas os meus equipamentos de jogo e ias lá para dentro. Eu vestia a T-Shirt do teu ídolo, punha o teu cachecol e saboreava um cachorro quente. E uma cerveja também.
Tu passavas a ser insultado por mim e eu passava a insultar-te. Do princípio ao fim.
Tu entravas em campo sob um tremendo coro de assobios e eu era um dos muitos que te assobiava. Com todas as minhas forças.
Tu sentias a responsabilidade de ter que dar o teu melhor e eu a obrigação moral de te massacrar caso não o fizesses. Mesmo que o tentasses.
E se de repente tu tivesses que decidir uma coisa que não viste, que não conseguiste ver ou que viste mas que te deixou muitas dúvidas? E eu tivesse que te relembrar como tenho grande afinidade à tua mãe, à tua irmã, à tua mulher e à tua filha?
E se repente te visses rodeado de gente que entrou por todos os lados sem que tu o pudesses evitar e eu fosse um dos que saltei, pulei, entrei e te cerquei também?
E se de repente percebesses que erraste? Que não estiveste bem? Que não foste feliz? Que não correu como querias? E eu fosse aquele que te relembrasse isso todos os dias, todos os meses, todas as épocas… toda a vida?
Para que a tua autoestima vacilasse ao ponto de quase duvidares da tua competência e qualidade.
E se de repente tentasses ser pedagógico num jogo de miúdos e quisesses ensinar um jovem a fazer um lançamento lateral corretamente… e eu te dissesse que o teu trabalho era arbitrar e calar, porque o menino já tinha quem o ensinasse a fazer isso?
E se de repente, nesse jogo, tu apenas aplicasses e cumprisses a lei e eu te dissesse que a tua obrigação era também a de ensinar o pequenito e não apenas a de puni-lo?
E se de repente desses uma entrevista procurando abrir com transparência as portas àquilo que fazes e eu te dissesse para arbitrares mais e melhor e falares menos?
E se de repente escolhesses não dar uma entrevista para não seres mal interpretado e indiscreto e eu te dissesse que devias falar mais porque vives num mundo corporativista, de silêncios cúmplices, onde sempre impera a lei da rolha?
E se de repente estivesses a passear com a tua família num domingo soalheiro e fosses incomodado, importunado, ofendido e ameaçado e eu fosse aquele que te incomodasse, importunasse, ofendesse e ameaçasse?
E se de repente quisesses ser honesto e assumir publicamente a tua cor clubística e eu te dissesse que já sabia, porque nunca me tinhas enganado? E se de repente optasses por nunca o fazer para protegeres a tua idoneidade e evitares te colocar no centro da polémica e eu te dissesse que quem não deve não teme e devias ter vergonha de não assumires as coisas frontalmente, como os homens fazem?
E se de repente. E se de repente. E se de repente…
Acorda. Estava a brincar.
Continuas a ser tu. Eu continuo a ser eu.
– “Nunca julgues alguém pela forma como ele anda a menos que estejas preparado para calçar os seus sapatos”